domingo, 19 de outubro de 2014

Despedida



Há um tempo que a gente percebe que não tem mais como ficar, precisa partir. Quando o coração se acomoda, como quando a gente deita no sofá. Tem dias que é preciso levantar a âncora e sair. Levantar acampamento, mesmo que dê trabalho juntar as coisas, os trapos, os cacos.

Nunca fui muito de partidas. Sempre preferi as chegadas. Mesmo assim sempre parti. Sento, na partida, mistura de atração e repelia. Sou daquelas que anseia uma viagem, planeja, sonha e anota todos os detalhes por meses, até anos. Mas quando enfim chega o dia da partida: saber-se fora de casa, longe do seguro, distante da rotina é abismo amedrontador. Deparar-se com lugares diferentes, sem saber das paisagens, casas estranhas sem o conforto e a segurança daquilo que a gente chama de lar, seja isso uma casa, uma rua, um trabalho ou um grupo de pessoas. Mas aí já não tem mais volta, o avião já está a decolar. Há que se enfrentar o medo, o abismo, o balançar da corda bamba.

 E mesmo com todo esse medo da partida, continuo eu partindo.Talvez seja esse sentimento tão difícil atraia todos os anos a fazer isso como que a força. Saber-se por alguns (ou muitos) dias longe do seguro, sair do prumo, sair do chão, da âncora, do asfalto, da terra, rumo ao desconhecido, ao solto, às surpresas, ao fato inesperado. Mas como, se eu gosto mesmo é do chão? Talvez a beleza esteja mesmo é nessa contradição.

 E a chegada pode ser tão difícil quanto a partida. Deixa-se uma casa arrumada, as roupas engavetadas, coisas compartimentadas. Parte-se e não sem alguma dor bagunçam-se as gavetas, os cabelos, chacoalham os vidros de perfume, misturam-se as essências. E na volta, tudo há de retornar ao seu lugar. Não, tudo há de tomar um lugar, pois o lugar de antes já não existe mais. Partir também implica perder. Partir significa saber disso tudo, saber das misturas das trocas de gaveta, das mudanças de configuração.Significa trocar as plantas de vaso. E quanta força pode existir em tirar da terra aquela raiz presa, estagnada, vivida e acomodada. Quanta dor deve ser pra planta ser trocada de vaso, mesmo que pra vaso de maior tamanho.  E quando instalada em outro vaso, que sensação de estranheza, pois já não é e ainda não mais raiz. Ainda não se apossou de seu espaço, mas já não pertence mais ao antigo. Se enraizar novamente toma tempo e há de conviver com a sensação de ainda não ser raiz daquela terra, mas de não mais ser da outra. Sensação de fora de casa, sem lar, sem proteção.

Hoje fiz uma partida. Saí de uma das tantas casas que a gente constrói consciente ou inconscientemente nessa vida. Fato é que as vezes essa casa é inacabada, o sofá é confortável, mas o colchão já tomou a forma do corpo... havia algo nela que já não me preenchia mais e não era mais culpa da decoração ou da necessidade de mão de obra pra colocar mais uma prateleira. Simplesmente não estava mais nas minhas mãos, nem das de ninguém. Mas como eu gostava (e ainda gosto) daquela casa... o sofá me servia bem, apesar das dores na coluna. A vista conhecida como casa de mãe, mas sabia que podia ir mais longe. Já tinha percebido há tempos que não podia morar lá, porque aquela casa não tinha chão. E chão é coisa de precisão numa casa. Eu, entre partidas e chegadas, precisava de chão que é porto seguro.

 Fiz uma partida, me libertei pro próximo destino, precisei entregar as chaves da casa e pedir a ela que trocassem a fechadura. Se deixassem a mesma, capaz de eu esquecer das suas faltas e de me deitar novamente no sofá e na vista, só pra sentir aquele conforto de casa de mãe. 

Precisava encontrar casa com chão. Casa sem chão não dá pra colocar tapete, e tapete é coisa que aquece o coração da gente.
Mas esse mesmo coração insistia que casa como aquela não se encontra fácil por aí, que casa boa é aquela que a gente conhece, já está acostumado... Era o bom e velho medo da partida... 

E digo a ele que se lembre, que aquela casa nunca foi só minha. Em verdade nunca foi de meu pertencimento. Ela por mim tinha apreço, gostava das minhas visitas, apesar de não me oferecer chão. E nunca foi propaganda enganosa. Nos classificados já dizia seus defeitos... Mas nas visitas...  era casa, tinha jeito de lar, de lugar que a gente gosta de chegar num final de dia. Me seduziu.

E como casa também sente falta da gente, disse pra ela que ela ia ter que se acostumar, que mais difícil para mim, mas que era em busca de uma casa com chão e que me coubesse, não podia mais com as dores na coluna.  Ela entendeu, mas se entristeceu... sabe das duas limitações, mas preferia continuar contando com as minhas visitas.... sabe que preciso partir.  Mas que um dia volto, só de visita, já instalada na casa com chão. 

Não consegui olhar pra vista antes de partir. Entreguei as chaves. Fechei a porta. 

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