domingo, 31 de janeiro de 2010

Aprumos

Arrumava s gavetas, os armários, a mesa. Ia colocando tudo em seu lugar, jogando fora o que não tinha mais uso, guardando aquilo que, mesmo que não se use mais, ainda lhe pertence.
Mudava alguns objetos de lugar, na esperança que ficassem ali, melhor acomodados. Difícil era jogar fora aquilo que morre, apodrece, papel mofado, discos arranhados. Aquela foto já quase apagada, o lápis já sem tamanho pra ponta, a tesoura enferrujada. Olhava o bilhete amassado, velho, quase rasgado. Sabia que tinha que jogá-lo no lixo, não lhe tinha mais serventia. Acumularia poeira, formiga, fungos. Olhava e olhava novamente na esperança de que um raio de clareza lhe fizesse deixar nas gavetas só o que precisava. Então fitava a flor guardada dentro livro. Seca, sem vida, sem cor. Talvez não conseguisse jogá-la fora na esperança de que voltasse a ter vida, de que se a plantasse novamente no vaso pudesse voltar ao rosa vibrante que tinha antes. Perseguia -a na esperança de que somente o seu olhar restaurasse aquele pequeno pedaço de planta e o transformasse de volta naquilo que foi um dia, ou naquilo que ela gostaria que fosse.
Não era possível. Não tinha tamanho poder e sabia que mesmo que quisesse não seria capaz de transformar de volta folha em flor, cinzas em papel, cores em fotos, preto e branco em cor.
Era preciso jogar mesmo tudo naquela sacola branca para enfim ser levado pra um lugar distante onde enfim ia ser decompor ou dado a outros que precisariam mais.
Papel sem uso vira rascunho, as fotos são rearrumadas na cortiça, sonhos são postos dela lado, outros são reavivados. Sabia que era preciso continuar arrumando para continuar vivendo, sabia que era necessário substituir fotos, papéis, anéis, lápis que se acabavam.
Cansou de arrumar e resolveu deixar tudo como estava, não como antes, mas como já tinha conseguido arrumar até agora. Não era a arrumação ideal, mas era havia feito o que lhe era possível e já era bastante.
Talvez a flor seca ainda fosse continuar dentro do livro. Mas havia conseguido substituir as fotos, os papéis e jogar outros tantos fora. E isso já lhe abria espaço. Espaço pra um novo tempo e para outra arrumação que tivesse que vir.

2 comentários:

Daniel Basilio disse...

Ah! Que escrita suave a sua! Gostei demais! Virarei frequência rsrsr
Beijos

Unknown disse...

Adorei esse, amiga! Deixa vontade de saber de onde veio essa flor, para quê ela gostaria de voltar a viver... adorei! E sim, é legal que vc não teve a cobrança (desnecessária) de terminar o que havia se proposto. Aliás, terminou, por ali, naquela situação, era onde vc podia ir mesmo (arrumação).